quarta-feira, 3 de março de 2010

Ensaio Sobre a Eternidade e... Crianças.


Cortou um corte fundo no dedo.
- Acho que isso daqui vai doer por um bom tempo. - pensou em voz alta o pequeno Joca, sem soltar nenhum gemido, enquanto levava o dedo à boca. O pequeno canivete passou de suas mãos às mãos pequenas do pequeno Juca. Ele apanhou o canivete e o manteve na palma de sua mão direita, apenas olhando-o.
- Vai. Agora é a sua vez. – disse o pequeno Joca, com uma voz ao mesmo tempo autoritária e desafiante. – É só dar uma picadinha na ponta do dedo. Vai logo que o meu já ta até parando de sangrar.
O pequeno Juca pousou a ponta afiada do pequeno canivete na ponta do seu pequeno dedo indicador, respirou fundo e afundou levemente na pele frágil. Soltando um “ai” contido, viu uma linha fina de sangue escorrer do buraco recém aberto.
- Doeu. – ele disse, sem vergonha nenhuma. Apertou a ponta do dedo, de modo a fazer sair ainda mais sangue, que primeiro se concentrou como uma bola na ponta do dedo, para depois escorrer e pingar na sua camisa.
Os dois ficaram frente a frente. Quem coordenou a cerimônia foi o pequeno Joca, como se fosse algo que fizesse todo dia:
- E agora, por meio do contato do nosso sangue, eu declaro que seremos amigos para sempre. – O dedo indicador ensangüentado do pequeno Joca uniu-se ao dedo indicador ensangüentado do pequeno Juca.
- Que nem naquele filme. – disse o pequeno Juca, com os olhos arregalados.
- Que filme?
- Aquele do Inspílbergue, que o garotinho encontra um et bonzinho no quintal da casa. Daí eles andam de bicicleta e o etê encosta o dedo no dedo do garotinho, e vai embora.
O pequeno Joca balançou a cabeça. Tomou um ar e continuou a cerimônia:
- Você, Juca Medeiros, aceita tornar-se meu amigo de sangue para sempre e todo o sempre, prometendo ficar ao meu lado nas horas boas e nas horas difíceis, não importando quem queira ficar entre nós?
- Hã? – perguntou o pequeno Juca, depois de perder de vista o vôo do pássaro que tentava acompanhar com os olhos.
- Presta atenção, poxa vida.
- Desculpa.
- Ta... de novo: Você, Juca Medeiros, aceita tornar-se meu amigo de sangue para sempre e todo o sempre, prometendo ficar ao meu lado nas horas boas e nas horas difíceis, não importando quem queira ficar entre nós?
- Sim!
- Boa! Agora você repete isso pra mim.
- “Sim!” – repetiu o pequeno Juca.
- Não, garoto. Você repete aquilo que eu te falei.
- Ah, mas agora eu não lembro mais.
- Diz assim: “Você, Joca Andrade, aceita tornar-se meu amigo de sangue para sempre e todo o sempre, prometendo ficar ao meu lado nas horas boas e nas horas difíceis, não importando quem queira ficar entre nós?”
- Como é que é?
- Ai, meu Deus. Repete comigo.
- Ta.
- “Você, Joca Andrade...”
- Você, Joca Andrade...
- “Aceita tornar-se meu amigo de sangue...”
- Aceita tornar-se meu amigo de sangue...
- “Para o sempre e todo o sempre...”
- Para o sempre e todo o sempre...
- Hmm... “em todas as horas da sua vida.”
- Em todas as horas da sua vida...
- Isso... e eu respondo “sim”.
- E eu respondo sim...
- Não... eu que respondo “sim”!
- Ah...
- Agora fecha os olhos e conta até dez. Daí a gente já pode separar os dedos.
Os dois fecharam os olhos e contaram até dez. Separaram seus dedos e olharam um para a cara do outro.
- E agora? – perguntou o pequeno Juca.
- E agora o que?
- E agora, o que a gente faz?
- Nada, ué. Agora nós somos amigos para sempre, e para todo o sempre.
- Hmmm... é mesmo? Mas eu me sinto igual a antes.
- Claro que você se sente igual a antes. A gente já era amigo antes. O que nós fizemos foi prometer que seremos sempre assim, não importa o que aconteça. Como um contrato.
- Como um o que?
- Um contrato. Sabe? Aquele documento que você assina quando se compromete com alguma coisa...
- Num conheço, não.
- Que seja! Nós acabamos de nos comprometer a sermos sempre amigos.
- E nós precisávamos furar nossos dedos pra isso?
- Como assim?
- Ora essa. Se nós somos amigos, por que precisamos prometer continuar sendo? Não basta... sabe... só continuar sendo?
- Sim, mas daí nós podíamos deixar de ser amigos daqui a um tempo.
- Por quê?
- Ah, sei lá. Eu poderia não querer mais ser seu amigo...
- Você não quer mais ser meu amigo? – perguntou Juca, e seus olhos marejaram.
- Não... quer dizer, claro que eu quero. Mas pode acontecer de, no futuro, eu não querer mais.
- E por que isso aconteceria? O que eu te fiz?
- Nada. Mas poderia fazer.
- O que?
- Não sei. Você poderia roubar minha namorada.
- Mas eu já tenho namorada. A Aninha. E você nem mesmo tem namorada.
- Eu sei, mas to falando do futuro. Você pode se cansar da Aninha e, de repente, roubar minha namorada.
- Eu poderia?
- Claro. Daí eu seria obrigado a deixar de ser seu amigo.
- Ah, mas se é assim, eu não roubo.
- O que?
- A sua namorada.
- Mas não é só isso, cara. E se você se mudasse pra longe, e nós perdêssemos o contato.
- Mas eu não quero me mudar pra longe.
- Pode acontecer. E se seu pai arranjasse um emprego fora da cidade. Você teria que se mudar com ele.
- Ou eu poderia ficar morando na sua casa.
- Acho que não. Minha mãe não ia gostar de ter mais um garoto lá em casa. Ela diz que eu já valho por cinco. Imagina mais você, que deve valer por mais cinco. Nenhuma mãe no mundo dá conta de dez crianças.
- Mas nós somos amigos para sempre. Você mesmo disse.
- Sim! Isso mesmo! Agora você entendeu!
- Entendi o que?
- O sentido do que a gente fez!
- O que a gente fez?
O pequeno Joca percebeu que nem mesmo a paciência de uma mãe que conseguisse dar conta de dez crianças seria páreo para o pequeno Juca. Ele, sozinho, já devia valer por umas quinze.
- Deixa pra lá. O importante é que agora nada pode nos separar.
- Mas e se eu roubar sua namorada?
- Mesmo se você fizer isso, nossa amizade será mais forte. Agora somos amigos de sangue, e isso é muito mais forte que qualquer namorada.
- Entendi.
Uma voz feminina começou a ecoar. O pequeno Juca logo reconheceu, ao primeiro grito, a voz de sua mãe. Despediu-se do pequeno Joca e, ainda com o dedo latejando, correu em direção a sua casa. O pequeno Joca caminhou sem pressa até a pequena praça verde que servia de ponto de encontro para casais tímidos que se sentavam nos bancos e ficavam trocando sorrisos contidos. Sentada em um dos bancos, encontrou uma loirinha muito simpática, cabelo preso por dois elásticos e bochecha coberta por pontinhos pretos. Ela sorriu ao vê-lo sentar-se ao seu lado.
- E então? Falou com ele?
- Falei. – ele disse, tentando manter em sua voz algo de misterioso.
- E como foi?
- Já está tudo acertado entre nós dois. Ele não vai ficar bravo.
- Que bom... eu estava preocupada. Ei, o que aconteceu com seu dedo?
- Não foi nada, Aninha... não foi nada...
Suas mãos se entrelaçaram, e eles ficaram lá, sentados, assistindo o sol desaparecer no horizonte, como se aquele espetáculo fosse para eles, e apenas para eles. Pois sabiam que o sol seria a única coisa que com certeza estaria lá em todos os momentos, nas horas boas e nas horas ruins.
Para sempre, e todo o sempre.

4 comentários:

Renatinho disse...

PQP CARA, QUE TEXTO FODA DEMAIS!
Sério, me fez rir, ficar intrigado e depois com raiva do pequeno Joca, mó esperto xD


ESCREVA UM LIVRO, TO NO AGUARDO!

Renatinha disse...

Old but gold! ;)

Mirele disse...

Bacana o conto! Se eu fosse você filmaria isso! hehehe

Douglas Funny disse...

...eu vou queimar esse moleque!!