terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Ensaio sobre a ignorância


Por Brancatelli

Um cara e uma garota se deitam na mesma cama, num reality show transmitido 24h. Ela dorme, ele faz alguns movimentos estranhos.
No dia seguinte, as redes sociais estão abarrotadas de pessoas pedindo a expulsão imediata do rapaz, o acusando de estupro e exigindo sua cabeça numa bandeja.

Uma mulher é filmada chutando seu próprio cachorro.
O vídeo se espalha pelo You Tube. Pessoas compartilham as imagens passando o nome, endereço e todos os dados imagináveis da mulher. Ameaças de morte pipocam a cada compartilhamento.

O músico de uma banda de pop rock adolescente é perigosamente atingido por uma pedra durante um show da sua própria banda.
O vídeo vai parar na Internet. Os comentários vão desde piadas ofensivas até desejos de que da próxima vez, a pedrada seja mais dolorosa. Outros pedem para que as pessoas inclusive copiem o ato em outros músicos populares.

Um restaurante é acusado de expulsar um casal de homossexuais por estar se beijando em um “ambiente familiar”.
Diversas pessoas pela Internet combinam um boicote contra o restaurante. Alguns comentários mais exaltados fazem menção a um ataque à bomba contra o estabelecimento.

Um jogador de futebol supostamente homossexual é anunciado como interesse de um grande time.
Os torcedores se unem contra a contratação, ameaçando o clube e o próprio jogador. Em alguns casos, até fisicamente.

Manifestantes tentam agredir o prefeito de uma cidade e furam os pneus do seu carro. Por conta disso, acontece um confronto com a PM.
Uma foto mostrando os policiais prendendo os manifestantes é postada. Todos acusam a PM de truculência e reafirmam a vergonha que é viver em um pais como o Brasil, onde os policiais agridem as pessoas sem motivo.

Durante seu show, uma cantora vê policiais abordarem um grupo que fumava maconha. Ela grita palavras de ordem aos policiais, sem se importar com o risco de incitar a violência em seu público, que a aplaude. Grita xingamentos contra os policiais, que inicialmente apenas estão cumprindo seu dever, e os desafia a prendê-la.
No dia seguinte, o vídeo da cantora cai na rede. Ele não mostra a ação da polícia, apenas a cantora. Ainda assim, o público fica do lado dela, critica a ação policial e a clama como uma heroína.

Na página de uma garota no Facebook, são postadas fotos de uma aparente festa sexual, uma “suruba”.
Mesmo com a própria garota afirmando que seu perfil pessoal fora invadido, milhares de pessoas compartilharam o perfil e o álbum de fotos em questão, chamando a garota de vagabunda, de sem-vergonha e de outros nomes de baixo calão.


Todos os casos acima são reais, e ocorreram no intervalo de pouco mais que um mês.
Todos se resumem aos FATOS, não a opiniões pessoais ou teorias e suposições.
Todos se resumem exclusivamente à imparcialidade.

Uma imparcialidade cada vez mais rara.

Vamos deixar uma coisa clara:
Todo mundo tem o direito às suas próprias opiniões.
Isso significa que você e eu temos o direito de criticar o que quisermos, dentro dos devidos parâmetros sociais.
Mas para isso, existe algo essencial para a formação dessa opinião própria..

É necessário conhecer todos os fatos!
Todos! Os! Fatos!

Se eu quero expor meus argumentos, eu preciso conhecer todos os lados de um acontecimento.
Eu não posso afirmar que houve um crime como o estupro vendo alguns “movimentos suspeitos” debaixo de um edredom. Posso, isso sim, exigir uma investigação sobre o caso, mas não posso apontar o dedo e acusá-lo de algo tão grave.
Não posso também divulgar publicamente dados pessoais de uma pessoa ou ameaçá-la de morte, independente do que ela tenha feito.
Do mesmo jeito, não posso desejar a morte de um músico por não gostar da música que ele faz. Não posso agredir alguém por termos gostos diferentes.
Eu não posso ameaçar um estabelecimento por conta de uma acusação, especialmente acusações que não são comprovadas. Mal-entendidos, acredite ou não, acontecem.
Assim como não posso ameaçar ou agir contra um atleta por conta da sua vida pessoal.
Ou julgar toda uma corporação por conta de uma imagem ou relatos na Internet.
Nem julgar essa mesma corporação tomando como base o ponto de vista de uma cantora. Seja você contra ou a favor das drogas, a maconha ainda é uma droga ilícita.
E se algo foi postado numa rede social, pode ter sido postado por qualquer um. Não é porque o perfil é seu que ninguém mais pode conseguir acesso.

Que fique bem claro que eu não estou defendendo ninguém.
Não sei se ele estuprou, se a policia bateu, se a mulher matou, se o restaurante foi homofóbico ou se a garota publicou o que não devia.
Mas suas opiniões e gostos pessoais não podem interferir no seu bom-senso.

E eu não estou dizendo que todos os julgados são inocentes, mas todos são sim inocentes até que se prove a culpa.
E para se provar a culpa, deve haver provas. Fatos.
Não “compartilhamentos” na Internet. Não é porque você leu algo no Twitter, viu uma imagem no Facebook ou assistiu a um vídeo do You Tube que aquilo é real, você deve ir atrás dos fatos antes de assumir um lado.


Você deve ir atrás dos fatos antes de assumir um lado.


Me assusta essa justiça de Internet.
As pessoas querem punir sem um julgamento.
As redes sociais podem destruir uma vida, e ninguém parece levar isso a sério.
O que cai na rede consegue um alcance inimaginável, e todos parecem levar isso na brincadeira. Não é brincadeira, estamos tratando da vida real por aqui.
É a vida real, como a minha e a sua.
Real como você e eu.

A ignorância só se espalha.
Essa ignorância alimentada pela preguiça em ir atrás dos fatos, pela falta de preocupação em se conhecer a verdade, por esse excesso de confiança em tudo o que se escuta, vê ou lê.
Todos parecem ter a necessidade de escolher um lado.
De assumir uma posição.
Custe o que custar.

Polêmicas sempre vão acontecer.
E quando acontecerem, elas estarão nas redes sociais, não há como fugir.
Nós temos ao alcance dos nossos dedos uma das maiores armas sociais já criadas desde a invenção da imprensa.
E sabendo usar essa arma, podemos mudar o mundo com um clique no mouse, com um compartilhamento no Facebook, com um comentário no Twitter, com um texto no blog.
O conhecimento pode nos levar até onde nunca nem imaginamos chegar.

Agora nós só temos que escolher,
Se queremos mudar o mundo para melhor.
Ou para pior.

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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

RIP

Por Brancatelli


Algo morreu.

Sei porque eu sinto nos meus ossos, na minha pele.
Eu sinto na minha cabeça, cansada.
Sinto na minha alma.

Sem causa e sem consequência.
Sem drama e sem barulho.
Sem nota no jornal.
Sem lágrimas.

Algo morreu.
E ainda que eu tente, é impossível ignorar.

Deitada em uma poça de sangue e tristeza, jaz minha infância.

Morreu em idade avançada, muito mais tempo do que qualquer infância deveria sobreviver.
Morreu esquecida, abandonada, empoeirada, castigada pelo desdém.
Pode ter morrido faz tempo, mas eu só percebo agora.

Mas sei que, há pouco, ela ainda estava aqui.
Agora não esta mais.

Sei que esteve aqui, sim, pois ela me ensinou tudo o que eu precisava saber.
(não tudo o que eu SEI, mas tudo o que eu PRECISAVA saber)
Sobre formigas, sobre cachorros, sobre pessoas.
Sobre o mundo, sobre o universo.
Sobre histórias.

Sobre tudo aquilo que deveria ser esquecido, mas não foi.
Que deveria dar lugar a outras coisas, mas não deu.
Deveria morrer, mas não morreu.

Mas ela morreu.

Foi morta pelo tempo.
Foi morta pela idade.
Foi morta pela razão.

Foi morta pelo desleixo, pela distância, pelo querer e pelo não-querer.
Foi morta pela vontade, pela necessidade, pela adversidade
Foi morta pelo desprendimento, morta pela pretensão.
Foi morta pelo acaso, e pelo descaso.
Foi morta pelo ser e pelo não ser.

Foi morta por todos vocês.
Foi morta por mim.

Eu matei minha infância.

Não matei com uma pedrada.
Matei pelo esquecimento.
Esta sim a forma mais cruel.

Mas sei que, ainda que morta, ela não me abandona.
Porque tudo o que ela me ensinou esta incrustado em mim.
Marcado dolorosamente a ferro quente, como tatuagem, onde ninguém pode roubar, ninguém pode alcançar.

Ninguém além de mim.

E é para la que eu vou.
Sempre que eu pensar em formigas, em cachorros, em pessoas.
Sempre que eu pensar no mundo, no universo.

Sempre que eu pensar em histórias.

É pra la que eu vou..

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